foto e texto: márcio barretoCaa-içara é uma palavra de origem tupi que significa “armadilha ou cercado de galhos”. Segundo definições acadêmicas, o caiçara é visto como o indivíduo de comunidades tradicionais de pescadores localizadas no litoral sul do Rio de Janeiro, no litoral de São Paulo e no litoral norte do Paraná. Vive em comunidades isoladas e sobrevive basicamente da pesca e da agricultura de subsistência. Cultural e geneticamente é fruto da miscigenação entre índios, portugueses e africanos, ocorrida nos primeiros tempos da colonização.
Nossa região está inserida geográfica e historicamente na definição que acabamos de comentar. Diferimos dela apenas em nossa organização econômica e no fato de estarmos ligados ao mundo. Porém, não é difícil supor que, em nossa origem, vivíamos assim, alimentando-nos do que plantávamos e pescávamos. Imagine-se, por exemplo, a época em que aqui vivia o bacharel Cosme Fernandes, mais de trinta anos antes da chegada de Martim Afonso. É natural supor que o conhecimento trazido pelo bacharel se uniu à sabedoria indígena, possibilitando o modo de vida caiçara. Assim, acredito que temos a mesma origem caiçara.
Porém, não vivemos mais como vivíamos há quinhentos anos. Será por isso que não somos caiçaras?
Vejamos, podemos afirmar tranqüilamente que somos brasileiros ainda que não vivamos mais como vivíamos no tempo da Colonização, ou seja, continuamos brasileiros apesar de todas as mudanças históricas pelas quais passamos. Por que seria diferente com a questão sobre nossa identidade caiçara? Se não vivo mais como viviam meus antepassados deixo de ser caiçara? E por que não conseguimos enxergar nossas raízes? Onde está nossa identidade cultural e histórica? Perdida nas artimanhas de um conceito que valoriza mais a cultura estrangeira do que a nossa? Esse conceito está enraizado no primeiro momento em que o indígena viu o português e sentiu sua pretensa superioridade. Ainda hoje somos assim, sobre-valorizamos a cultura estrangeira e, muitas vezes, menosprezamos a nossa, acreditando que o que vem de fora é sempre melhor.
O que me intriga no conceito acadêmico é olhar o ser humano como uma peça de museu, parada no tempo, desvinculada do momento presente. O caiçara das comunidades tradicionais tem seu modo de vida preservado porque vive em regiões ainda isoladas, caso contrário, estaria vivendo como nós, haja visto o que aconteceu no litoral norte paulista depois da inauguração da estrada Rio-Santos.
Talvez a questão seja: devemos preservar o que éramos ou devemos mudar conforme o passar dos tempos? Creio que devamos preservar e também mudar, pois caso contrário ficaremos perdidos, sem saber quem somos e quem fomos.
A cultura caiçara é muito mais abrangente do que o conceito acadêmico e tacanho que insiste em limitá-la. Acredito piamente que a gênese e a formação do povo brasileiro é caiçara. Por que afirmo isso? Primeiro porque não posso afirmar que o indígena que aqui vivia antes do Descobrimento fosse brasileiro (mesmo porque a idéia de Brasil ainda não existia), sendo assim, visto que o colono era português e o escravo era africano, o primeiro brasileiro necessariamente seria filho dessa miscigenação, ou seja, seria caiçara. Mas como essa identidade poderia ter se alastrado pelo resto do país a ponto de, quase inconscientemente, formar a identidade brasileira? Simples, através dos bandeirantes paulistas liderados pelos portugueses e jesuítas que tinham como principal força de trabalho o caiçara vindo do litoral, mais precisamente de São Vicente. O movimento das Bandeiras, para se ter uma idéia, chegou a alcançar as terras do Paraguai, depois de desbravar o sertão paulista, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás e Mato Grosso. Ao mesmo tempo em que destruíam, matavam e aprisionavam, os bandeirantes levavam consigo sua herança cultural, seus hábitos, sua crenças oriundos de sua gênese caiçara.
A partir do séc. XIX com a chegada dos imigrantes estrangeiros, nossa região possibilita uma nova onda de miscigenação cultural e genética. É bom lembrar que, durante a maior parte de nossa história, todo conhecimento, toda cultura, chegava pelo mar e aportava em nossa região, para depois ser levada para o resto do Brasil. Como, então, tendo o Brasil começado aqui, em sua origem caiçara e, a partir daqui, se desenvolvido, não teríamos ajudado a formar a identidade brasileira?
Enfim, somos caiçaras, filhos do mar e da terra, dos índios, dos portugueses, dos africanos, dos espanhóis, italianos, franceses, holandeses, japoneses. Somos o primórdio e a contemporaneidade.
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