quinta-feira, 15 de março de 2012

Wisnikianas - visões antropofágicas na ilha de São Vicente



"Wisnikianas - visões antropofágicas na ilha de São Vicente" é uma homenagem ao músico, compositor e pesquisador vicentino José Miguel Wisnik. O texto é composto por fragmentos de sua obra interligados por reflexões sobre a identidade cultural brasileira e sua gênese. São recortados de seu universo o antropofagismo, o futebol, Machado de Assis, a imigração e a miscigenação. O processo de montagem se desenvolve a partir do conceito e dos desdobramentos da música-teatro de Gilberto Mendes, assim como os conceitos do que chamamos de "arte contemporânea caiçara", onde procuramos ressaltar o minimalismo, a aleatoriedade, o hibridismo e a relação entre o ancestral e o contemporâneo utilizando-se a literatura, a dança, o vídeo, o teatro e a música.

Primeiro Movimento

Sons de vento. Folhas secas jogados no chão. Projeção de vídeo da fachada de um velho hotel. Um foco de luz branca se ascende no canto esquerdo do palco, Wisnik, em pé, lê um jornal.

WISNIK: “Diz uma secreta e talvez duvidosa lenda familiar que meu avô embarcou com a família para a América, no mar Báltico, pensando aportar em Nova York, mas foi desembarcado em Paranaguá. Todos os dias agradeço esse erro, que veio para salvar. Meu pai era um imigrante polonês de família camponesa católica, dessas que formaram as levas de colonos polacos paranaenses, conduzidos primeiro para a zona rural, afluindo depois para Curitiba. Minha mãe, uma brasileira mestiça típica, no caso mineira, que ele encontrou mais tarde no litoral de São Paulo. Nasci em 27 de outubro de 1947 na cidade de São Vicente...”

Volta a ler o jornal e sai de cena. Cessa o vídeo. Sons de vento. Vídeo com imagens da ilha de São Vicente em preto e branco. Sons de carros, buzinas, conversas, propagandas, fragmentos de músicas, dial de rádio. Os atores atravessam o palco como se estivessem andando em uma calçada movimentada de São Vicente. Entram os músicos carregando seus instrumentos, direcionam-se cada um a um ponto do palco e preparam-se para tocar como se fossem executar uma apresentação na rua. Um homem vestido com terno atravessa lentamente o palco. Todos param. Uma bola de futebol é jogada em sua direção. Sons de torcidas de futebol, apitos e narrativas entrecortadas. Olha para os lados e começa a fazer embaixadas com a bola e sai de cena. Todos voltam a se movimentar. Os músicos vibram as cordas de seus instrumentos, um a um - devem ser percutidas as mais graves, iniciando o segundo movimento quando o som da primeira corda tiver cessado, primeiro pausadamente e depois acelerando – como chuva que começa fraca e depois se torna forte. Um corredor de luz se acende horizontalmente do proscênio para a rotunda. Os músicos param. Sons de sino. Uma menina cola folhas de papel no chão com movimentos rápidos e precisos, ao terminar de traçar uma linha do proscênio para a rotunda sai de cena. Os músicos voltam a tocar. Em vídeo, é projetada a imagem do Equilibrista, com vara e balões -filmado do alto para baixo - sua movimentação sugere que ele está descendo a rotunda – quando a cena chega no limite entre a rotunda e o chão do palco, o Equilibrista (ator) continua o movimento do vídeo da rotunda em direção ao proscênio, pisando nas folhas deixadas pela menina.

EQUILIBRISTA (quando chega ao meio do palco): O silêncio. No princípio era o sonho e fez-se o silêncio audível como o verbo de um pensamento que escapa. Um verbo-silêncio deslizando nas águas desse oceano inacabado que banha as praias brasílicas onde tupinambás, portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e africanos vivem e guerream sobre os sambaquis.

CORO: No princípio era o silêncio e do silêncio fez-se o sonho abrupto como um temporal. O som. O sonho-som do silêncio. No princípio era o sonho e do silêncio fez-se o verbo deslizando nas ondas de um oceano inacabado...

O EQUILIBRISTA: A máquina. Ou tudo o que poderíamos pensar e já foi pensado, reiterado, transformado, reciclado, vislumbrado. A máquina que move mundos, tempos, eras, dias, cidades e idéias. A máquina que aciona espelhos e virtualidades em nosso pensamento. Acenos. Acentos. Lembranças.

O Equilibrista repete seus movimentos e falas em um volume cada vez menor e sai de cena. Sons de carro, buzinas, conversas, propagandas. Os músicos param e guardam seus instrumentos, andam pelo palco e saem. Sons de vento. A Menina entra e retira os papéis.


SEGUNDO MOVIMENTO – a origem do samba ou como a música criou o homem através da repetição

Pestana entra no palco. Cumprimenta os retratos dos compositores clássicos Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann e do escritor Machado de Assis – todos projetados em vídeo. Encaminha-se para o piano. Senta-se, consulta algumas partituras, faz anotações e prepara-se para tocar. Começa com uma composição aos moldes europeus e aos poucos a fragmenta e a transforma em polca e depois samba. Percebendo a mudança contrária a sua vontade, levanta as mãos abruptamente e levanta-se irritado.

SINHAZINHA MOTA: — Ah! O senhor é que é o Pestana? (pausa) Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?

PESTANA: Diga, minha senhora.

SINHAZINHA MOTA: É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.

Irritado volta ao piano. Para e cumprimenta novamente os retratos. Senta-se, consulta algumas partituras, faz anotações e prepara-se para tocar. Começa com uma composição aos moldes europeus e aos poucos a fragmenta e a transforma em polca e depois samba. Percebendo a mudança contrária a sua vontade, levanta as mãos abruptamente e levanta-se mais irritado.

SINHAZINHA MOTA: — Ah! O senhor é que é o Pestana? (pausa) Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?

PESTANA: Diga, minha senhora.

SINHAZINHA MOTA: É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.

Irritado volta ao piano. Para e cumprimenta novamente os retratos. Senta-se, consulta algumas partituras, faz anotações e prepara-se para tocar. Começa com uma composição aos moldes europeus e aos poucos a fragmenta e a transforma em polca e depois samba. Percebendo a mudança contrária a sua vontade, levanta as mãos abruptamente e levanta-se mais irritado.

PESTANA (gritando): “As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo.”

Anda em círculos e para. Tira a casaca e o chapéu, fecha o piano e sai de cena. Sons de vento. Folhas secas jogadas no chão. Projeção de vídeo da fachada de um velho hotel. Um foco de luz branca se ascende no canto esquerdo do palco, Wisnik, em pé, lê um jornal.

WISNIK: “Diz uma secreta e talvez duvidosa lenda familiar que meu avô embarcou com a família para a América, no mar Báltico, pensando aportar em Nova York, mas foi desembarcado em Paranaguá. Todos os dias agradeço esse erro, que veio para salvar. Nasci em 27 de outubro de 1947 na cidade de São Vicente. Meu pai era um imigrante polonês de família camponesa católica, dessas que formaram as levas de colonos polacos paranaenses, conduzidos primeiro para a zona rural, afluindo depois para Curitiba. Minha mãe, uma brasileira mestiça típica, no caso mineira, que ele encontrou mais tarde no litoral de São Paulo. Exatamente a mesma composição étnica de Paulo Leminski. Curitiba se notabiliza historicamente por ser um ponto de passagem de tropeiros localizado exatamente no meio do nada, num lapso geográfico sem maiores arraigamentos culturais. Um ponto de parada no meio do caminho, e sem a pedra. Os imigrantes italianos, alemães e poloneses que vieram marcar em regime de colonato a substituição do regime de escravidão (abandonados os ex-escravos à sua própria sorte, sem projeto de inclusão) formaram por sua vez, no Paraná, grupos autorreferidos e refratários entre si, sendo os polacos os últimos da escala do sociograma de rejeições recíprocas. Esse modo de formação é o contrário do estilo fusional brasileiro, baseado na ambivalência das violências e das misturas, das mesclas culturais. Talvez por isso, se não for muito delírio, o “leite quente” das sílabas custe a se misturar na música das palavras, em contraste com o amolengamento à la Gilberto Freyre da linguagem afro-brasileira (sons de batucada ao fundo). Dando um curso sobre canção brasileira, certa vez, constatamos, eu e o grupo de alunos, que enquanto no Rio assistimos à transformação da polca em samba, em Curitiba pode-se constatar a improvável mutação do samba em polca. Esse animado e responsável grupo de percussão que passa exatamente agora pelo calçadão em frente ao hotel não me deixa mentir.”

Entra o grupo de percussão vestido com fantasias e máscaras de carnaval. Música “Mundosamba”

Makunaimas sensações de parto / Lispectorianos passos de dança,
De Marios, Oswalds / Wisnikianas visões antropofágicas
Tupiniquins questões existenciais / Samba / Será do morro o samba?
Samba / Bossa / Polca / Punk / Rap / Choro / Baião / Maxixe / Forró
Pop / Be boop / Capoeira / Terreiro / Maracatu / Samba, sambá, sambou
Sambo eu, samba você / Samba minha cabeça de dragão chinês

Samba a bossa nova / Samba o rock / Samba o jazz / Samba o tango
Samba o samba / Sambo eu, samba você / Samba minha cabeça de dragão chinês
Samba o presidente / Samba o povo / Samba o nobre / Samba o pobre / Samba a solidão
Sambam os amantes / Sambo eu, samba você / Samba minha cabeça de dragão chinês
O samba não é do morro. O samba não é chinês. O samba é tupimambá.

Todos saem de cena com o término da música.

TERCEIRO MOVIMENTO – entre arlequins e canibais ou como os tupinambás descobriram o futebol antes dos ingleses.

Mario de Andrade entra no palco andando de bicicleta em círculos.

MARIO DE ANDRADE (como se estivesse vendendo jornais): “Há uma gota de sangue em cada poema”. Um imenso Abaporú que em cada verso regurgita mundos e reconstrói universos, protoplasmas de indiscutível subjetividade atômica. A máquina! A máquina macia que devora sonhos. Cuidado: as realidades são muitas e os sonhos são poucos. Extra! Extra! São Paulo invadida!

Anda em círculos cada vez menores até que para no centro do palco.

MARIO DE ANDRADE: Atônitos, um milhão de abaporus correram soltos pelos guetos e pontes sujas de São Paulo. Queimaram tudo, arrasaram a cidade e semearam o caos; mendigos, banqueiros, velhos e crianças, nada escapou a sua fome. Destruíram museus, teatros, fábricas, hospitais, igrejas. Implodiram prédios. Sua glória foi vã e seu motivo inexistente. Persistiram e se multiplicaram.

Sai de cena. Som de tambores, flautas indígenas, pássaros. Uma luz se acende sobre Cunhambebe que, sentado de costas para a platéia, sorve sangue de uma tigela.

CUNHAMBEBE: O carnaval é feito de versos livres, bandeiras, villas, andrades, vaias, miados, latidos, grunhidos, relinchos. Porque se há uma gota de sangue em cada poema, há uma pedra no meio do caminho de cada poema. Na verdade, no meio do caminho há uma pedra de Ipeirog com um certo Hans Staden engordando na sombra do pau-brasil enquanto espera para ser devorado e sonha com Anchieta levitando entre os tupinambás no Teatro Municipal de São Paulo em plena Semana de 22. Um nhê-nhê-nhêm contínuo pelas beiradas do tempo, mingau de átomos . A-karu ybaka (eu como o céu).

Mario de Andrade cruza o palco de bicicleta em disparada.

MARIO DE ANDRADE: São eles! Fujam! Fujam!

CUNHAMBEBE: “Já sempre já. Já sempre mais. Já nunca jamais”.

A tribo entra correndo, forma um círculo em volta de Cunhambebe e responde em coro, iniciando uma dança de celebração. Ao término, um banquete de corpos humanos é repartido entre os tupinambás. Acende-se um foco de luz sobre Wisnik amarrado. Depois de alguns momentos, uma cabeça rola pelo chão e cai aos pés de Wisnik que tenta fazer embaixadas. Quando começa a falar, aos poucos os tupinambás param e começam a ouvi-lo.

WISNIK: Amigos, amigos. Sei que a fome é muita e o tempo exíguo. Mas não podemos deixar de conversar um pouco enquanto tão suculenta homenagem é repartida. Sei que ficaram impressionados e eu bem poderia tocar fogo nos rios se quisesse. Mas o futebol é minha arte, companheiro constante de meus pensamentos, dúvidas, reflexões. Ouçam, “segundo Pasolini o futebol se joga em prosa e em poesia. Os europeus jogam em prosa. Digamos, os alemães e os ingleses jogam em prosa realista, os italianos jogavam em prosa estetizante. E os sul-americanos, especialmente os brasileiros, jogariam em poesia. E ele descreve semiologicamente isso. É um texto muito interessante, que coloca a questão do futebol brasileiro como um futebol de poesia. Há uma outra variante disso, que recrudesceu na década de 70, que é a do futebol força: ocupação de espaços, vigor físico para matar a pretensão de jogadas criativas. A Copa de 70 consagrou aos olhos do mundo um futebol poesia, e o desenrolar da década de 70 trouxe uma dúvida sobre isso, porque levantou o futebol força. O futebol em prosa ganhou uma espécie de dominância aparente que fazia, no Brasil, acreditar-se que a arte era uma coisa do passado. Isso está ligado às eternas oscilações entre reconhecimento e negação do ser brasileiro. Então justamente das Copas de 1974 a 1994, são 20 anos em que a pergunta é “entre a poesia e a prosa, qual é a superior”, que é a pergunta do Caetano Veloso na música Língua”.

TIBIRIÇÁ: "O futebol é o teatro do mundo" - Horst Bredekamp.

BARTIRA: "Futebol significa liberdade" – Bob Marley.

PIQUEROBI: "Em que o futebol se parece com Deus?", questionou o escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Blecaute em resistência enquanto saem os tupinambás levando Wisnik e discutindo sobre futebol. Acende-se um corredor de luz horizontal. Sons de carros, buzinas, conversas e propagandas comerciais. Um homem vestido com terno atravessa lentamente o palco. Uma bola de futebol é jogada em sua direção. Sons de torcidas de futebol, apitos e narrativas entrecortadas. Olha para os lados e começa a fazer embaixadas com a bola.

QUARTO MOVIMENTO – o parto dos abaporus ou como makunaima pressentiu a o vôo do ultrapássaro na madrugada das pérolas.

Os abaporus entram em cena. Bailarinos improvisam sobre o tema. O parto dos abaporus – onde nasce Makunaima. Ao piano a música “O ultrapássaro da primavera”

A primavera é quando ninguém mais espera / É quando jogo / Pérolas aos poucos
Aos mares / À lama de onde vem / Maré cheia / Eu jogo ao fogo a loucura
De tanto ser demais, / de tanto ser além de céus azuis
ultrapássaros, pérolas e praias / A primavera é o pesar do mundo
Um fio de loucura / Fagulha / Eu jogo pérolas ao sol

Blecaute.

texto: Márcio Barreto

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