por André Azenha (editor) e Rachel Munhoz
http://santoscultural.net/2012/05/marcio-barreto/Trazer a ancestralidade para a contemporaneidade. Essa é uma das principais missões de toda obra do artista Márcio Barreto. Artista, porque ele é músico, compositor, escultor, escritor, editor, seu próprio assessor de imprensa, produtor e, além disso, abriu uma editora artesanal para publicar seus livros e de outros colegas. Márcio é criador dos projetos Percutindo Mundos, Imaginário Coletivo de Arte, Canoa, entre outros. O que todos eles têm em comum? Mostrar que o caiçara tem sua própria identidade cultural e ela deve ser valorizada. É claro que a temática gerou elogios e críticas – até de colegas. “As pessoas me criticam, dizendo que inventei isso para justificar minha obra. Falam também que criei uma editora só para publicar meus livros. Ué, é. Ninguém vai me publicar? Então, deixa que eu mesmo faço”, emenda.
Questionado sobre o valor econômico de sua arte, Márcio comenta que os artistas precisam parar de ter medo de cobrar pelo que fazem. “O Ademir Demarchi acha que o negócio é divulgar ideias, eu também acho, mas preciso pagar contas. A gente não tem que sentir vergonha de cobrar pelo que faz, não faço pelo dinheiro, mas preciso do dinheiro, até para produzir mais. O caralho que vou vender meus livros a cinco reais” .
Depois que seus projetos foram expostos, dando sua cara à tapa, como ele mesmo diz, lembra que outros coletivos surgiram, nos mesmos moldes que os seus, mas que isso não é negativo. “O projeto do Flávio Viegas Amoreira segue os mesmos princípios do Percutindo Mundos, mas isso é bom. Quanto mais, melhor”.
O ponto alto de sua obra, segundo ele, é a mistura de várias expressões de arte. E quando o assunto é sua relação com o público, é categórico: “ninguém é obrigado a gostar de nada. Tem muitas coisas boas, que alguns acham uma merda. E tem merda que, um dia, pode chegar a revolucionar a arte. A identificação com a obra é fundamental”.
A entrevista exclusiva a seguir rolou durante cerca de três horas, no apartamento do artista, regada a boas xícaras de café. Era um sábado de manhã, e Márcio, casado com a bailarina Célia Faustino, fala com ímpeto sobre o que acredita e realiza. Atencioso, mostrou ainda vários dos instrumentos que construiu e as composições que têm levado o Percutindo Mundos a vários palcos. Confira:
De onde você é?
Nasci em Santos, em 10 de maio de 1970. A minha infância, até os doze anos, mais ou menos, morei em vários estados do Brasil. Meu pai trabalhava em administração, em grandes empreiteiras, então eles o transferiam. Morei no Rio de Janeiro, Macapá, Paraná, Santa Catarina, interior de São Paulo, Amazonas. Meus pais eram daqui da região. Minha irmã nasceu em Santos também e mora em São José do Rio Preto.
Qual sua religião?
Não tenho, mas não sou ateu. Acredito em Deus, em minhas concepções, rezo. Fui ateu quando me tornei comunista. Com 9, 10 anos, queria ser padre. Aí depois veio toda aquela coisa marxista e eu me tornei ateu, durante muito tempo. E até que eu conheci uma frase do Fernando Pessoa, que me marcou muito, “Não acreditar em Deus, é um Deus também”. Você sempre vai ter uma concepção, pode chamar Deus de qualquer coisa, de teoria da física quântica, da mata, do sol, enfim, são concepções. Acho que a fé está muito próxima da arte, no sentido de que pode levar o homem para além do que ele é. Como alguém que nunca tocou música, de repene toca, cria um grupo e começa a se apresentar? Porque a arte possibilita isso: dar passos além do que nossos passos podem.
Como começou sua relação com a cultura?
A primeira arte com a qual tive contato foi a literatura. Com oito anos, escrevi meu primeiro poema e, a partir daí, não parei mais. Comecei a ler muito cedo, com 11 anos já estava lendo Marx. Nietzche foi um dos primeiros filósofos que me chegou às mãos. Li muito durante minha adolescência inteira, muito mesmo. Três, quatro livros por semana. Até andando eu lia, saía do ônibus e continuava lendo. Meu pai também gostava muito de ler – nenhuma literatura, era um leitor de jornais daqueles que leem até os anúncios fúnebres. E o que era legal é que, toda palavra que eu não sabia o significado, ele me falava. Até que, com uns 14 anos, ele me deu o dicionário Aurélio de presente de aniversário. Por causa das minhas leituras, como Marx, me tornei comunista e, já em 82, eu militava, quando era ainda ilegal. Eu tinha 11 ou 12 anos nessa época. Estudava em colégio público. Comecei a militar no Partido Comunista e no Movimento Estudantil também, junto com a retomada do FESTA e dos Centros Universitários, da UMES, que tinham ficado proibidos na Ditadura.
E o teatro?
Com uns doze anos, comecei a fazer teatro em Santos, no Vasco da Gama. Na época, era dirigido pelo Paulo Maurício. Yara Nascimento também fazia parte. A Kátia Bariano, aquele pessoal todo da década de 80, do movimento teatral que foi muito forte. Fazia teatro estudantil no Martim Afonso e sempre escrevendo também. Aí, quando eu entrei para a Hotelaria, em 94, com 24 anos, tive que parar tudo, menos a literatura. Ler você pode sempre, em qualquer horário, de madrugada…
Como começou na música?
Em 2007, ainda estava trabalhando em hotelaria, mas comecei a me interessar por música. O Wilmar Santos me visitava e lia meus poemas. Um dia, ele pegou uma letra e musicou. E aquilo começou a me instigar. Todo artista anseia música, seja a área que for. Comprei um Cajon: pensei, se eu não aprender, pelo menos tenho onde sentar, mas acabei aprendendo mesmo. E depois comprei outros instrumentos. Aprendia e comprava outro, e assim foi indo. Os primeiros foram os de percussão: Cajon, afoxé, caxixi, essas coisas de efeito. Depois comecei a fazer alguns instrumentos também. Na verdade, nunca fui músico e comecei a compor antes de saber música – sou autodidata. Então, quando você cria um instrumento, tem a possibilidade de fazer uma música única, você acaba tendo uma sonoridade mais específica. E o que era engraçado é que eu já sabia o que eu queria na música antes de saber tocá-la. Já tinha as principais linhas daquilo que eu queria, com uma percussão melódica, a questão das harmonias dos timbres, minimalismo, de trazer a literatura, o teatro e a filosofia para a música. Uma arte mais cinestésica, que eu acho que vinha da minha aproximação do teatro, que já é uma arte coletiva, que tem o cenário, som, etc.
A questão de estar sempre agregando várias linguagens em um único trabalho veio naturalmente. Comecei a fazer instrumentos e a compor em casa, sozinho. Não tinha ninguém para tocar comigo. Quando a gente começa, ninguém quer tocar conosco, nem minha mãe aguentava. Nunca tive o menor jeito para música. Sabe aquele que, na família, todo mundo tirava sarro? Aquele que não tem ritmo. Eu nunca tive um artista na família, em nenhuma área.
Como você foi parar em hotelaria?
Olha só, que história! Estava desempregado, com 24 anos, sem saber que rumo tomar na vida. Pensava em que profissão devia seguir. Com 24, eu já tinha ido morar sozinho. Me casei em 1992 e tive meu primeiro filho. Acabei me separando, estava na casa dos meus pais, desempregado novamente. Um dia, estava jogando xadrez com um amigo no calçadão e, de repente, um cara grita por um salva-vidas. Eu olho lá longe, um corpo. Nadei com muita velocidade, era uma menina de nove anos, estava quase morrendo afogada. Salvei a garota e pensei que coisa legal tinha feito, imaginei que a vida podia conspirar ao meu favor depois daquilo. Dias antes, tinha saído um anúncio sobre uma vaga de caixa, no Parque Balneário. Fui até lá, mas me disseram que a vaga já tinha sido preenchida. Passou uma semana, me ligaram avisando que o cara tinha desistido e o emprego era meu. Assim, comecei em hotelaria. Depois fiz turismo, comecei a fazer vários cursos, inglês, espanhol, francês. E nessa época, eu só escrevia, tive que abandonar o teatro.
Você começou a pesquisa sobre cultura caiçara por causa dos instrumentos?
Não, antes disso. Porque eu comecei a me perguntar “quem a gente é?” Assim, coletivamente. Você anda por Santos, São Vicente, o povo é uma coisa muito vaga. É diferente quando a gente pensa, por exemplo, no gaúcho, no baiano, já vê com toda aquela carga, história, identidade. Aí eu comecei a pesquisar nossa história, cheguei à cultura caiçara e fui desenvolvendo as minhas pesquisas a respeito. A principal referência em estudo da cultura caiçara é a do Palme, que é um núcleo da USP, do santista Antonio Carlos Diegues. Só que eles colocam de uma maneira própria da visão acadêmica: o cara que nasceu naquele lugar, etc, etc. Então, comecei a partir de outro pressuposto. Primeiro, a nossa origem era o modo de vida caiçara. Óbvio que, com a urbanização constante da nossa região, a gente acabou com essa cultura, diferente de lugares como Cananéia, que não possuem estradas. Porém, meu pressuposto é que, apesar de não vivermos mais como, nós ainda somos. Eu não deixei de ser brasileiro porque vivo diferente hoje em dia. E comecei a ver na questão caiçara a possibilidade de enxergar a própria gênese da sociedade brasileira. A história inicia aqui e, a partir daqui, se expande também. Através dos Bandeirantes, dos Tropeiros, depois com a chegada dos estrangeiros. Tudo ajudou a formar a consciência da identidade brasileira. Na verdade, é muito recente a preocupação com a nossa identidade. Começa a se discutir isso em 1808, com a chegada da corte. Mas ainda assim, é a tentativa de criar uma identidade com a visão européia, trazida pela corte, que é natural. Ainda mais naquela época, com a proibição de estradas no Brasil, sem imprensa, sem nada. Essa é uma parte mais teórica da nossa pesquisa, que vai nortear todos os nossos trabalhos, seja em literatura, teatro ou música.
Como foi criado o Percutindo Mundos e o Projeto Canoa?
O Canoa surgiu dessa pesquisa de cultura caiçara e identidade cultural. Fui chamando um aqui, outro ali, lançamos o projeto em 27 de novembro de 2007. Em janeiro de 2008, montei o Percutindo Mundos baseado no que fazia com a molecada na escola. Os alunos pesquisavam a matéria, a gente discutia, refletia bastante a respeito e transformava em arte. E assim fazemos no projeto, pesquisamos e transformamos em música. No começo, estava morrendo de medo, pois ía colocar a cara à tapa. Então, o pessoal começou a achar legal, um som diferente. E imaginei que chegaria a hora de fazer um show e eu não tinha ninguém. Foi quando comecei a chamar algumas pessoas e, com um mês de grupo, a gente se apresentou nas tendas de verão. Logo em seguida, conhecemos uma artista plástica pela internet, chamada Camila Nascimento, de São Paulo. Ela ouviu nosso som e nos convidou pra abrir uma série de exposições na capital, com a curadoria do Oscar D’Ambrósio. Na mesma época, a Marília Bonas veio coordenar as Oficinas Pagu e me convidou para dar algumas aulas. Chamei um pessoal de cultura caiçara, desde escultura, música, surf. E não paramos mais.
E como foi a evolução?
Foi muito legal. Um grupo de pessoas que não eram músicos.
E o Imaginário Coletivo de Arte?
Na época da criação dos projetos, eu estava escrevendo o “Ácidos Trópicos”, sobre o Gilberto Mendes, que estava sendo um grande parceiro. Ele aparecia em todos os saraus que organizávamos. Ainda temos o hábito de conversar sempre, por telefone, se ver. E nada mais justo do que fazer uma obra sobre alguém que nos inspira tanto. Não temos que esperar as pessoas morrerem para homenageá-las. “Morre, vira gênio.”
Comecei a reunir o pessoal, trouxe o Tarso Ramos, Alessandro Atanes, os bailarinos e, assim, lançamos o Imaginário Coletivo de Arte, criado em 2010, mas efetivado em 2011. Começamos a fazer umas reuniões sobre dança no espaço da Célia [Faustino], e foi lá que surgiu o Núcleo de Pesquisas do Movimento - Imaginário Coletivo de Arte. Montamos o Homo Ludens, fomos selecionados para a Bienal do Sesc. Agora, esse ano, estamos fazendo uma série de apresentações nos parques de São Paulo, pelo projeto Cultura Livre SP.
Quando começou a publicar seus livros?
Há um projeto chamado Sereia Ca(n)tadora, criado pelo Ademir Demarchi, inspirado em um escritor peruano chamado Oscar. Quando esse artista estrangeiro veio para o Brasil, senti vontade de presenteá-lo com um livro. Então chamei o Galeno Malfatti, sobrinho da Anita Malfatti, que sempre trabalhou comigo. Disse pra ele que queria escrever um livro e ele me respondeu que íamos dar um jeito. Logo, dei meu primeiro livro de poesia “O Novo em Folha”ao escritor peruano . Depois, o Galeno começou a ter problemas com drogas, foi internado e tudo. Hoje, ele está bem. Mas na época, tive que continuar essa história de livros sozinho. Foi então que, mais tarde, lancei as Edições Caiçaras, em dezembro de 2010, inspirado na Sereia Ca(n)tadora. Meus livros são o “Novo em Folha”, de 2010; “Atro Coração”, 2011; “Nietzsche ou do que é feito o ar dos violinos”, 2011; “Ácidos Trópicos”, 2011.
E quando começou a publicar os livros de outros?
Antes eu só publicava os meus livros. Há quem tenha me criticado e falado que eu só me publicava. Oferecia para um monte de gente, mas ninguém queria. Escrevo desde os 12 anos e nunca tinha publicado na vida. Montei a editora por causa disso: quem ía me publicar? Eu mesmo. Os livros são costurados, feitos de papelão e bambu, que eu pego na rua. O papel é reciclado e as capas são de sacolas de loja. Faço a catalogação, projeto gráfico, editoração. Até que o Marcelo Ariel publicou o livro dele comigo, daí veio o Ademir Demarchi, com o “Obras Cadáveres”, o ensaio, sobre a “Estamira”. E agora, estou trabalhando no “Perdas e Danos”, da Madô Martins [O livro foi lançado na Casa das Rosas, 31 de maio, em São Paulo, na Quinta Poética Caiçara]. São 50 exemplares, estou fazendo de 10 em 10. Também foi lançado recentemente “Desaforismos”, do Flávio Viegas Amoreira. E vou lançar “MundoCorpo”, de poesia, e um romance, que é o “Totem”. Mas não tenho previsão.
Explique sua relação com o público?
É muito engraçado. A música do Percutindo Mundos é diferente, uma nova concepção musical. Não é rock, samba e também não é a fusão desses ritmos para criar outro ritmo. Na verdade, é uma ressignificação de identidades culturais que são traduzidas na música. Em 2008, fomos tocar nas tendas que, normalmente, têm shows de música mais convencionais. Apresentamos duas músicas, morrendo de medo, muita insegurança. Estava com medo de olhar para o público e olha que já tinha feito teatro.
Até que, uma vez, em um show que o Percutindo fez uma participação no Teatro Municipal, minha perna tremia que até parecia que eu ia cair. Terminamos a apresentação e descemos do palco, o pessoal disse que achou legal, diferente. Tinha bastante gente, pessoas que entendiam muito e que não entendiam nada de música. Alguns não gostaram no começo, mas depois passaram a gostar. Acho que o gosto é muito pessoal, você pode ouvir uma obra super bem construída do Gilberto Mendes e não gostar. Acho que, apesar de toda essa multiplicidade, globalização nas comunicações, há sempre o anseio pelo novo. Se eu tivesse montado um tipo de pagode, ou axé, funk, olha quanta gente que já está fazendo isso. Então, quando você traz alguma coisa nova, toca o coração das pessoas que estão buscando algo novo. Costuma ter uma boa aceitação.
As críticas ruins nunca são ditas, a gente sempre escuta de outras pessoas. Mas ninguém é obrigado a gostar do que a gente faz. O gostar é o se identificar. Eu posso ver um quadro maravilhoso, mas se não me diz nada, não me remete a nenhuma lembrança, pensamento, reflexão minha, pessoal e intransferível, eu posso até achar bonito, mas não dá. A obra tem que ter a identificação. Por isso que eu falo tanto da identidade cultural. Sem uma identidade, não tem como se identificar. A intenção é criar um movimento artístico, antropológico, social. Não podemos limitar a obra do artista apenas à sua obra: ela tem que ser mais abrangente. Como se fossem ficções para a obra, que não é apenas imaginação, são reais. O próprio nome do “Imaginário Coletivo” é isso, o imaginar. Essa busca da ancestralidade nada mais é do que a busca desse coletivo imaginário consciente, onde estão as grandes e pequenas inspirações. Às vezes, posso ver algo sobre a umbigada que pode influenciar em algo nos meus trabalhos.
Em nossa região há uma grande falta dessa identidade e gera individualismo. Já escutei muito que sou individualista, fechado. Se eu analisar bem, a maioria das minhas obras são coletivas, que envolvem várias pessoas, de núcleos diferentes. A Virada Caiçara que organizamos em São Vicente, de um dia para o outro, direto, mais de cem artistas envolvidos de Praia Grande, Cananéia, Guarujá, São Vicente, Paraty, Ubatuba, Cubatão, São Paulo, Mauá. Isso não é coletivo? Esses pequenos grupos que vão se formando são naturais, mas é muito contraproducente.
E os egos?
Pode prejudicar muito a troca de ideias. Uma das coisas que eu acho fundamentais, que norteiam nosso trabalho desde o começo, é que a cada avanço, a gente precisa ser mais humilde. No momento em que você começa a se achar o máximo, vai ter um monte de gente que vai te achar uma merda. Prefiro não citar com quem acontece. A gente não é nada, se parar de produzir, acabou, ninguém vai bater na sua porta para falar do seu trabalho. Apesar de produzirmos tanto, é muito pouco ainda. É como uma mulher bonita: se ela é bonita, mas antipática, você não liga muito. Mas quando uma mulher é bonita e simpática, você acha ela linda. Quando a humildade vai embora, a arte vai embora. Muita gente se acha gênio, como já diria Fernando Pessoa. Não é menosprezar meu trabalho, mas não posso achar o melhor trabalho do mundo. Tem tanta coisa considerada genial e, de repente, para mim ou para você, não é. Como tem tanta coisa que a gente pode achar uma merda e daqui há uns anos, pode revolucionar a arte. O que muitas vezes o artista esquece é que a obra é uma consequência das relações que ele tem com as pessoas. É fundamental, eu preciso me relacionar bem com a imprensa, com o órgãos públicos, amigos, com quem não me conhece, inclusive inimigos. Uma época da minha vida, no tempo que eu ficava só na hotelaria e escrevendo, tinha alguns amigos e, às vezes, ficava puto com alguém, só que depois passava um tempo e você fica sozinho, fica triste. Quem não pisa na vida? Quantos erros a gente já não cometeu? E a gente sente falta, tem amigos meus que já me roubaram por causa de drogas e continuam meus grandes amigos. Fiquei puto, falei um monte, dei uma distanciada, tem que colocar certos limites para não virar festa. Mas é preciso entender que a gente não é melhor que ninguém. Podemos cometer até coisa pior.
Esse lance de aprender música sozinho, veio de ser punk?
Sim ,do “faça você mesmo”. Isso norteia a questão caiçara. Na banda Sex Pistols ninguém era músico, eles roubaram uns instrumentos e foram tocar.
Como você se relaciona com a mídia?
Costumo fazer release de tudo que faço, com as minhas limitações, não sou jornalista, mas preciso ser também. Então, desde o lançamento do projeto Canoa, no final de 2007, comecei a descobrir contatos dos jornais. A Tribuna nunca publicava, mas eu sempre fiz. Mando para o Estadão, Folha de São Paulo. Nunca publicaram, mas vai ter um dia que eles vão publicar, de tanto ver o que está acontecendo. Você vê o Percutindo na internet, vai à um evento de cinema, escuta uma conversa de pessoas falando sobre isso, vai em outro lugar e vê uma performance. Isso vai despertando. Acho que, particularmente, a gente tem uma relação muito boa com a imprensa da região. Eu só tenho a agradecer A Tribuna, Boqnews, às mídias da internet da região, eles sempre deram muito apoio. Antes do Gustavo Klein, em 2009, o José Luis, Zé Gatão, fez uma matéria do Percutindo Mundos de uma folha inteira, em uma época que o jornal A Tribuna não dava muito enfoque para cultura daqui. E eu comecei a fazer esse trabalho e divulgar essa ideia na mídia local, de que o papel do jornalista não é apenas comentar o óbvio, o que todo mundo já comenta. É descobrir o valor e mostrar para aqueles que ainda não perceberam. Colocar o artista local em pé de igualdade com os outros. Então, no A Tribuna, hoje, você vê Ademir, Flávio, a gente, eles têm feito todo mundo. Nós saímos na mesma folha que o Paul McCartney – antes a notinha pequena seria a nossa. Então, mudou bastante.
No momento em que os artistas começam a valorizar a sua identidade, genuinamente local, a mídia começa a enxergar isso também. Porque a gente vive numa época em que o local não existe mais, dentro do meu quarto, eu tenho contato com o mundo inteiro, contatos efetivos, de organização de eventos em que eu vou tocar. Tudo isso que a gente faz é pesquisa. Nessas brincadeiras, eu já formei um grupo de pesquisas na UNESP, em São Vicente, sobre música e cultura caiçara. Dei palestras na UNIFESP, na USP. Dentro da escola, a gente faz pesquisa da cultura caiçara. É essa busca de trazer a filosofia para arte. Não interessa só a forma. Mário de Andrade discutiu muito isso no Modernismo, que a forma é importante, mas ela sempre vem acompanhada de uma nova visão de mundo. Senão, fica aquela coisa parnasiana, de arte pela arte. Por isso, eu dou mais valor ao simples, do que ao virtuosismo. Mais valor à ideia, do que à técnica. Não que eu menospreze, mas é criar as nossas próprias técnicas. Não que vai ser melhor do que ninguém, mas a gente está aqui também para dar as nossas interpretações, criar coisas. É importante, é nossa maneira de contribuir. Se vão concordar ou não, é outra coisa.
Eu falo muito essa coisa de Brasil Caiçara, tiram sarro do que eu digo, falando que daqui há pouco até os chineses vão ser caiçara para mim, mas é uma coisa que vai indo, quero alargar esses conceitos. Na USP eles restringem as coisas, mas eu vejo muito mais semelhanças em todo o litoral brasileiro. Eu acho que o Brasil começa com um Brasil Caiçara, há algumas especificidades, o samba carioca é diferente do samba paulistano, baiano, mas tudo é samba. Já os acadêmicos, consideram mais as especificidades. O caiçara é visto, a grosso modo, como vagabundo, malandro, você encontra até no Aurélio. Porque o paulistano vinha pra cá e via o caiçara dormindo ainda ao meio-dia, mas o cara tinha acordado duas horas da manhã, já tinha ido pescar e feito várias coisas bem antes do paulistano. Ainda hoje, o paulistano vê assim, por morarmos na praia. E quando você vê essa concepção e começa a perceber que o caiçara começa a dar origem a uma identidade brasileira, é diferente, você começa a se ver diferente.
E sobre o poder público, o que você acha da gestão?
No começo do projeto Canoa, que era mais amplo, participei de uma reunião e senti muito rancor dos artistas em relação à mídia e ao poder público. O que a gente tem que levar em consideração, é que o jornal, o órgão público, município, estado, Sesc, eles não trabalham para o artista. Eles trabalham com o povo e vão trabalhar com a gente na medida em que o povo estiver com a gente. Isso é ridículo, pensar que eles vão ajudar a divulgar, não é assim que as coisas funcionam. É a mesma ideia que norteia o artista de que ele precisa de um produtor para divulgar a sua obra. Quem faz isso é a gente. Só vamos ter tudo isso quando o nosso trabalho estiver lá em cima. Não vai ter um produtor batendo na minha porta. Eu que tenho que ir propôr, ver as necessidades, para poder me encaixar, senão a gente vai pensar sempre de uma maneira paternalista. A responsabilidade pela sua vida é sua. Não adianta por a culpa nos seus pais, você que tem que resolver. Pensar que arte está assim, porque os órgãos não dão atenção, é verdade, mas o problema é meu, eu que tenho que resolver isso, como artista. O rancor não gera nada. Eu não posso prender meu trabalho a um órgão. Em cada lugar que eu entro, sempre penso que isso vai me possibilitar abrir outra porta. Da mesma maneira que eu me relaciono com os artistas, eu tento fazer com a mídia, com os órgãos públicos e o público. Não tem que chegar e obrigar ninguém a falar do meu trabalho. Chegar reclamando: o que ele vai ganhar com isso? Não tem que ser um baba-ovo, mas tem outras maneiras mais inteligentes de fazer isso. Você é mais do que a soma dos seus medos, temores e frustrações.
Quais são seus projetos para o fim do ano?
O lançamento dos livros da Madô e o meu. O “Wisnikianas – Visões antropofágicas na Ilha de São Vicente”. O próprio José Miguel Wisnik vai participar com a gente e será homenageado. Foi uma ideia que surgiu do Gilberto Mendes. Escrevi o texto, que doeu para escrever, mas saiu. Vamos fazer também uma homenagem especial de São Vicente para ele, que é da Cidade, pela câmara. Tem também o novo show do Percutindo Mundos, que é o Percutindo Samba. Conta a história do samba, desde o samba de roda, umbigada, jumbo, passando para a primeira música gravada, Cartola e as músicas do Percutindo - que chamamos de samba calunga, é uma concepção nossa de samba. Tem um trabalho de dança, que vou fazer com a Célia, sobre a Cora Coralina. Há também o envolvimento de futuros trabalhos com a Companhia do Estado de Repertório, outro coletivo que, para mim, surgiu inspirado no nosso. Quanto mais, melhor.
Estou fazendo um trabalho de teatro para a Madô Martins, que tem o mesmo titulo do livro, “Perdas e Danos”. E, além disso, recebemos um convite da Espanha, da brasileira Maristela Sid, que mora há um bom tempo por lá e foi convidada para participar do Mirada. Ela nos chamou para fazer um trabalho bem legal entre nós, aqui do Brasil, e o pessoal da Espanha. Será sobre as regiões espanholas e nós vamos ficar com a parte do país basco, bem legal. Envolve música, teatro e dança.
Cada novo trabalho é uma nova pesquisa, mais conhecimento, a gente entra em contato com as nossas limitações e como vencê-las. Na verdade, é uma grande luta de superação. Não consigo publicar meu livro, então vamos montar uma editora artesanal. E assim vai indo, é a forma como a gente trabalha as nossas limitações, por isso não dou valor ao virtuosismo, acho que, às vezes, é mais importante trabalhar com o mínimo, e por meio desse mínimo, alcançar o máximo. É como no cinema, quantos efeitos existem? Mas, às vezes, o melhor filme é aquele que usa o menor número de recursos tecnológicos. É uma das coisas que a gente trabalha muito na arte caiçara: os princípios do minimalismo. Então, o que a gente vem desenvolvendo na arte contemporânea caiçara, é o que a gente aplica na literatura, teatro, música, dança, vídeo, pesquisa.
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